Cargo vitalício e salário de R$ 35 mil: as esposas de ministros de Lula nos tribunais de contas

  • Mariana Schreiberda BBC News Brasil em Brasília

Com o apoio poderoso do marido, o ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT), Aline Peixoto desponta como favorita para assumir o cargo de conselheira do Tribunal de Contas dos Municípios da Bahia (TCM-BA).

A escolha está prevista para ocorrer no início de março em uma eleição na Assembleia Legislativa baiana (Alba). Rui Costa, que foi governador da Bahia por dois mandatos até 2022 e elegeu como sucessor seu aliado Jerônimo Rodrigues (PT), tem importante influência na Casa.

Caso a eleição da ex-primeira-dama baiana se confirme, Costa será o quarto ministro do governo de Luiz Inácio Lula da Silva a ter sua esposa como conselheira de um tribunal de contas, instituições que têm como função fiscalizar se o dinheiro público está sendo bem empregado.

Esses cargos vitalícios dão estabilidade até os 75 anos (idade limite para aposentadoria no serviço público) e remuneração a partir de R$ 35.462,22. Além disso, trazem poder, já que os tribunais de conta podem, inclusive, deixar políticos inelegíveis, caso as contas de seu governo sejam rejeitadas.

Em janeiro, a Assembleia Legislativa do Piauí elegeu a ex-primeira dama, Rejane Dias, para conselheira do Tribunal de Contas do Estado (TCE-AL). Seu marido, Wellington Dias (PT), atual ministro do Desenvolvimento Social, governou o Piauí até março de 2022.

Outros dois ex-governadores, hoje ministros de Lula, já chegaram ao governo federal com as esposas eleitas para tribunais de contas dos seus Estados. No caso do ministro dos Transportes, Renan Filho (MDB), Renata Calheiros foi eleita pelos deputados estaduais de Alagoas para o TCE em dezembro. O ministro governou Alagoas até abril do ano passado.

Marília Góes, esposa do ministro do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes (licenciado do PDT), se tornou conselheira do Tribunal de Contas do Amapá em fevereiro de 2022, quando seu marido ainda governava o Estado. Sua indicação chegou a ser suspensa pela Justiça sob acusação de nepotismo (favorecimento profissional devido ao vínculo familiar), mas a decisão foi revertida.

As três já nomeadas, por integrarem tribunais responsáveis pelas contas dos governos estaduais, ficam impedidas de executar uma das principais funções dos conselheiros — sendo esposas dos ex-governadores, não podem participar do julgamento de suas contas.

A BBC News Brasil entrou em contato com a assessoria dos quatro ministros e com os gabinetes das três conselheiras já nomeadas, mas nenhum deles se pronunciou.

Na Bahia, onde a disputa está em curso, a tentativa de eleger Aline Peixoto virou munição política. O líder da oposição na assembleia baiana, deputado estadual Alan Sanches (União Brasil), classificou de “imoral” a tentativa de eleger a esposa de Rui Costa para o TCM-BA. Seu partido lançou o deputado estadual Tom Araújo para disputar a vaga com Aline Peixoto.

“Não tenho absolutamente nada contra a ex-primeira-dama, mas pessoalmente eu acho imoral indicar a esposa para um cargo vitalício, até os 75 anos de idade, com salário de R$ 41 mil, cuja maior prerrogativa é ser esposa do ex-governador e ministro da Casa Civil. Não faço juízo de valor sobre a pessoa da ex-primeira-dama, mas faço, sim, sobre os princípios que o atual ministro da Casa Civil esquece de usar”, criticou Sanches em seu perfil do Instagram.

Até mesmo o senador Jaques Wagner (PT-BA), ex-governador baiano e padrinho político de Rui Costa, disse ao jornal local Metro1 que não concorda com a indicação da ex-primeira dama. E ainda sugeriu que sua eleição não estava garantida, já que a eleição será com voto secreto. “Eu não gosto de apostar nada em voto secreto não, que voto secreto é um bicho danado”, declarou.

Com formação de enfermeira, Aline Peixoto presidiu a organização Voluntárias Sociais da Bahia enquanto era primeira-dama. Antes disso, foi assessora especial da Secretaria de Saúde da Bahia e diretora do Hospital Geral de Ipiaú. Para além do embate político, indicações de parentes para tribunais de contas têm gerado disputas jurídicas.

Um caso antigo com desdobramentos recentes ocorreu no Paraná. Em 2008, Maurício Requião foi eleito como conselheiro do TCE pelos deputados estaduais durante o governo de seu irmão, Roberto Requião, que hoje está no PT, mas na época era do PMDB.

Sua posse, no entanto, foi suspensa por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), em uma ação que questionava a nomeação de Maurício Requião apontando que haveria nepotismo em sua escolha e que a eleição na assembleia estadual não teria seguido os prazos e ritos legais.

Após essa decisão, a assembleia revogou a eleição do irmão do governador e escolheu outro conselheiro, Ivan Bonilha. Em 2022, porém, após longa batalha jurídica, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que essa revogação não respeitou o devido processo legal e decidiu pela recondução de Maurício Requião ao cargo. Ele passou a integrar o TCE do Paraná em dezembro, quando uma nova vaga abriu com a aposentadoria de outro conselheiro.

No caso de Marília Góes, após sua eleição pela assembleia estadual, sua posse foi suspensa em março do ano passado por uma decisão judicial que considerou sua escolha como nepotismo, atendendo a uma ação popular.

Essa decisão, porém, foi revertida na segunda instância judicial uma semana depois. A segunda decisão considerou que Marília Góes foi escolhida pela assembleia estadual e que eventual prática de nepotismo poderia ser comprovada ao longo do processo.

O nepotismo foi proibido no serviço público por decisão do Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula Vinculante 13, mas a própria Corte estabeleceu exceções e há controvérsia se a proibição se aplica às vagas em tribunais de contas.

Essa súmula vedou a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente até o terceiro grau. No entanto, o Supremo estabeleceu também que funções públicas de caráter político, como cargos de ministros e de secretários estaduais e municipais, são funções em que pode haver a nomeação de parentes.

Segundo o professor de Direito Administrativo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), André Cyrino, há juristas que defendem uma interpretação ampla do que seriam cargos políticos, para englobar até membros do Ministério Público.

Na sua visão, mais restrita, os cargos políticos — que permitem, portanto, nomeação de parentes — são aqueles cuja nomeação está ligada à lógica eleitoral.

Por isso, Cyrino avalia que cargos de conselheiros e ministros de tribunal de contas podem ser considerados políticos, assim como a nomeação de ministros do STF, por exemplo, que são apontados pelo presidente da República e depois aprovados pelo Senado.

No entanto, embora não veja um enquadramento legal como nepotismo, o professor considera “lamentável” a nomeação de familiares para essas funções.

“Eu acho que as esposas dos governadores que estão sendo nomeadas podem ser as pessoas mais honestas do mundo, mas acho que aí vale a regra da mulher de César, com o perdão do trocadilho ao falar das esposas: não basta ser honesta, tem que parecer honesta”, disse, em referência à famosa frase atribuída ao imperador romano Júlio César.

“Então ainda que você escape da incidência da Súmula vinculante 13 a partir dessa lógica de que se trata de uma decisão política, você, por outro lado, não escapa do escrutínio público, que é próprio da democracia”, reforçou.

Tribunais de Contas, casa antiga de políticos e parentes

Apesar do nome, os tribunais de contas não integram o Poder Judiciário. Na verdade, são instituições que auxiliam o Poder Legislativo na fiscalização dos gastos do Poder Executivo.

Enquanto o Tribunal de Contas da União fiscaliza o governo federal, os tribunais de contas dos Estados costumam fiscalizar despesas dos governos estaduais e das prefeituras.

No entanto, Bahia, Goiás e Pará criaram tribunais de contas dos Municípios, específicos para avaliar as contas das prefeituras, enquanto as cidades de Rio de Janeiro e São Paulo tem cada uma um Tribunal de Contas Municipal.

Parte das vagas desses tribunais é eleita pelo Poder Legislativo e parte é escolhida pelo Poder Executivo.

Com isso, essas indicações acabam tendo forte caráter político. Um levantamento realizado pela Transparência Brasil em 2016 mostrou que 80% dos titulares desses cargos ocuparam, antes de sua nomeação, cargos eletivos ou de destaque na alta administração pública (como dirigente de autarquia ou secretário estadual).

A presença de parentes de autoridades também não é novidade. O mesmo levantamento indicou que cerca de um terço (32%) dos conselheiros e ministros do país eram familiares de políticos ou de integrantes de relevo do Poder Judiciário.

No TCE de Alagoas, por exemplo, onde Renata Calheiros chegou há pouco, o atual vice-presidente, Otávio Lessa, é conselheiro desde 2002, quando foi indicado por seu irmão, o então governador Ronaldo Lessa (PDT).

Já no TCE da Paraíba, Fernando Rodrigues Catão foi nomeado conselheiro em 2004 por seu sobrinho, o então governador Cássio Cunha Lima (PSDB).

Reeleito em 2006, Cunha Lima foi cassado por decisão judicial em 2009. No ano seguinte, seu primo, Arthur Cunha Lima, também se tornou conselheiro do TCE, após ser escolhido pela Assembleia Legislativa paraibana.

Para a diretora executiva da Transparência Brasil, Juliana Sakai, a indicação de parentes e aliados de políticos cria uma “benefício de mão dupla” e acaba enfraquecendo a fiscalização dos tribunais de contas.

“De um lado, você coloca alguém que tenha afinidade política, num cargo para receber muito bem vitaliciamente, e, ao mesmo tempo, essa pessoa deixa de ter um controle muito restritivo, para favorecer os que estão no poder. Então, existe aí o aparelhamento de uma estrutura”, crítica.

Maria Alice Gomes, que estuda a composição de tribunais de contas em seu doutorado pela Fundação Getúlio Vargas, explica que é natural que os cargos nos tribunais de contas sejam ocupados por pessoas “da seara política” devido ao processo de escolha. Outro fator que possibilita isso, diz, são os critérios “vagos” que a Constituição estabelece para a escolha de ministros e conselheiros.

Segundo o texto constitucional, a pessoa deve ter deve ter idoneidade moral e reputação ilibada; notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública; e mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos mencionados.

“Então, não existem critérios tão específicos que exijam a qualificação técnica de quem vai exercer um cargo vitalício. É comum que os cargos sejam preenchidos por deputados estaduais, pessoas que estão ligadas ao meio político naquele Estado”, ressalta.

Nesse sentido, Gomes não considera necessariamente algo negativo a indicação das esposas de ex-governadores. Na sua avaliação, essas indicações têm o impacto positivo de aumentar a representatividade de mulheres nos tribunais de contas.

Levantamento realizado por ela e outros pesquisadores nos 33 tribunais de contas constatou que mulheres são apenas 11,2% das vagas de conselheiros e ministros (26 num universo de 231).

“Política é familiar”

A cientista política Débora Thomé, doutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF), ressalta que política é algo tradicionalmente familiar não só no Brasil, citando exemplos da política americana, como as famílias Bush e Clinton.

Ela nota que familiares de políticos já crescem nesse meio e acabam tendo mais facilmente conexões e apoios para ocupar espaços de poder. Por outro lado, para quem não tem esses vínculos prévios, o processo para conquistar esse espaço é custoso e longo, já que normalmente exige enfrentar eleições disputadas.

“É algo ruim porque, de alguma maneira, você cristaliza o poder no entorno de poucas famílias”, ressalta.

Ela acredita que o aumento da pressão por mais mulheres em espaços de poder pode ter influenciado a decisão de indicar esposas de governadores e ex-governadores para tribunais de contas, em vez de outros familiares desses políticos.

Para Thomé, é preciso fazer uma distinção entre mulheres indicadas para esses cargos que conquistaram antes mandatos eletivos e trilharam uma trajetória própria na política, ainda que com apoio do marido, e aquelas que não disputaram eleições.

Ela cita por exemplo o caso da Rejane Dias, que exerceu mandatos de deputada estadual e federal. Formada em direito e administração de empresas, ela também ocupou vários cargos nos governos do marido, como secretária estadual de Assistência Social e Cidadania (2005 a 2006) e secretária estadual de Educação (2015 a 2018).

Marilia Góes, por sua vez, é delegada aposentada da Polícia Civil do Amapá e estava em seu terceiro mandato como deputada Estadual pelo PDT quando se tornou conselheira do TCE.

Assim como Aline Peixoto, Renata Calheiros não teve mandato eletivo antes de ser nomeada. Formada em administração, ela foi técnica concursada da Caixa Econômica Federal e atuou entre 2015 e 2022 como coordenadora de dois programas do governo do marido: o Criança Alagoana e o Alagoas Feito à Mão. (Reportagem da BBC Brasil)

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