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Uma questão de direito: quando até o sistema judiciário viola a vítima

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Por Alessandra Diehl, psiquiatra e especialista em sexualidade 

O Anuário Brasileiro de Violência, na edição de 2020, aponta que a cada 8 minutos uma pessoa é estuprada no Brasil e a cada 2 minutos existe uma ocorrência de agressão doméstica em nosso país. O Brasil é o 5º no ranking mundial quando o assunto é a violência contra a mulher – que são 89% das vítimas que sofrem esse tipo de crime de estupro.

O estupro acarrerta consequências gigantescas e, muitas vezes, incalculáveis para a saúde física e mental das vítimas, como a depressão, transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), HIV, infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e traz altos custos para os sistemas de saúde e criminal. As vítimas de estupro são 13 vezes mais propensas a tentar suicídio em comparação às outras formas de violência. Cerca de 80% das vítimas de estupro sofrerão com dor crônica e/ou outros transtornos psicológicos de formas duradouras. Após a agressão a atividade sexual pode se tornar algo terrivelmente assustador para muitas mulheres. Trata-se, portanto, de um fenômeno global, um grave problema de saúde pública que desrespeita os direitos humanos e direitos já adquiridos por todas nós, mulheres.

Essa realidade é ainda mais alarmante porque faltam dados oficiais sobre a real dimensão deste fenômeno no Brasil e acredita-se que apenas 35% das pessoas que foram estupradas geralmente apresentam de fato queixas policiais. A subnotificação pode ser explicada por vários motivos, mas principalmente pelo machismo arraigado em nossa sociedade patriarcal.

“O estupro culposo”, tipo penal inexistente, é só mais uma parte chocante do julgamento envolvendo a blogueira Mariana Ferrer. Na audiência, a vítima de estupro foi novamente agredida. Dessa vez, o sistema que deveria ser espaço de acolhimento e segurança acabou por vitimar novamente a mulher que implorou por respeito. O advogado do acusado proferiu golpes verbais horrendos contra ela. Esse ato apenas evidencia que as mulheres são tratadas como “levianas” até mesmo sob o olhar de alguns operadores do direito quando o assunto é o estupro. O machismo enraizado na sociedade brasileira insiste em colocar a vítima nos bancos dos réus como provocadoras, estimuladoras da violência sexual e seres dotados de alta capacidade sedutora para os “indefesos homens”.

De forma alguma, nenhum estupro pode ser justificado pelo comportamento da mulher que sofreu o ataque sexual – seja porque tem uma “conduta sexy” ou estava usando “roupas de menos”. O nome disto é culpabilização da vítima. Em relação à sentença, que criou uma tipificação penal inédita, podemos compreender que o vocábulo “culposo” pressupõe não intenção. Mas como explicar que estupro não é intencional? Sexo sem consentimento é estupro e ponto final! Consentimento por sua vez, não é a ausência do não, mas a presença do sim! Obviamente do sim de alguém que possa consentir. De alguém que esteja em plena capacidade de suas faculdades mentais e do seu estado de consciência (lúcida) para assim o fazer.

Sabemos que existe uma clara associação positiva entre o uso de álcool, por exemplo, e a vitimização por violência física ou sexual contra mulheres. No entanto, a direção temporal da associação permanece obscura. Em outras palavras, não é a garrafa de álcool que causa o estupro, mas sim o próprio estuprador. Portanto, parece óbvio que o consumo de álcool é um agravante e não um atentuante. O uso de álcool pela vítima também pode ter impacto na ajuda e na procura de assistência médica, uma vez que mulheres que estão sob o efeito da substância no momento do estupro são menos propensas a chamar a polícia ou procurar tratamento médico por receio de mais julgamentos.

O que assistimos na audiência de Mariana Ferrer foi um show de horrores e nos coloca em uma situação de desacreditar na Justiça brasileira. Esse caso reforça a tese da culpabilização da vítima, do machismo, do patriarcado vigente, do abismo que existe ainda com relação a desigualdade de gêneros e da supremacia de pessoas brancas e ricas. Tudo isto, vem a corroborar para que muitas outras mulheres estupradas no Brasil não busquem seus direitos e clamem por justiça.

As violências – (no plural sim, porque são muitas – contra as mulheres não podem ser banalizadas ou naturalizadas. A justiça não deveria permitir que virasse um espaço de agressão verbal. Está muito difícil ser mulher no Brasil hoje. Situações como estas, leva a um enorme sentimento de impotência. Desacredita a todas nós, mulheres, cada vez que esse tipo de violência institucional acontece. Enquanto dentro do próprio poder judiciário e de outras instâncias de direitos e proteção da mulher houver a conivência com as violências contra as mulheres, qualquer uma de nós estará desprotegida.

Enquanto o direito penal só pode punir o comportamento desviante, as intervenções de saúde pública podem usar estratégias de prevenção mais eficazes de promover comportamentos e relacionamentos positivo neste contextos. Existe uma enorme necessidade de ampliação de educação sexual nas escolas brasilieras de mais campanhas na mídia e de estratégias de prevenção ambiental, além de educação/treinamento para juízes, promotores e médicos generalistas e foresences em atender vítimas de violência sexual.

          

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