“Equidade na toga”, fruto da tese de mestrado da juíza de direito Luciene Oliveira Vizzotto Zanetti, mostra os impactos da cultura patriarcal na ascensão de carreira das magistradas
Mulheres magistradas enfrentam maior dificuldade na sua trajetória profissional e na ascensão na carreira, sofrem assédio, moral e/ou sexual, precisam lidar com impactos na saúde mental em decorrência da carga excessiva de responsabilidades pessoais, familiares e profissionais. Se você é mulher deve ter se identificado com algumas dessas dificuldades. Estar em espaços de poder, como na magistratura, não blinda mulheres do patriarcado, pelo contrário.
O tema é abordado no livro “Equidade na Toga-Desigualdade(s) de gênero na magistratura e impactos da organização de trabalho genderizada na carreira das mulheres magistradas do TJPR”, resultado da pesquisa de Mestrado em Mulheres, Gênero, Cidadania e Desenvolvimento, realizado pela juíza Luciene Oliveira Vizzotto Zanetti na Universidade Aberta de Portugal. A obra já pode ser adquirida pelo site da Editora Thoth. O lançamento oficial será na próxima sexta-feira, 21 de fevereiro, às 19h, na Livraria da Vila do Aurora Shopping.
No livro, Luciene, juíza titular na 1ª Vara Cível e da Fazenda Pública, no Foro Regional de Cambé, Comarca de Londrina, traça um panorama da vivência das magistradas do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR) a partir de pesquisa junto às mesmas. Uma das constatações é a baixa representatividade de mulheres nos cargos mais altos do TJPR (cúpula diretiva). Enquanto elas representam 59% da força de trabalho do Tribunal (incluindo ocupantes de cargos efetivos e em comissão, estagiárias e prestadoras de serviços voluntários) e 46% dos magistrados e magistradas, somam apenas 14,2% dos desembargadores – índice abaixo da média nacional, de 20%.
“Na magistratura, a pouca representatividade das mulheres nos espaços de poder e decisão espelha os papéis vivenciados socialmente por mulheres e homens na cultura patriarcal, com a ‘masculinização’ do comando e a ‘feminilização’ da subalternidade. Na base da carreira, em razão de a entrada acontecer via concurso público, é significativo o número de mulheres, uma situação que se inverte nas instâncias superiores e em cargos providos por indicação”, destaca a juíza em trecho do livro.
Vivência
Mãe, magistrada, esposa, acadêmica, pesquisadora e bastante atuante na área de Gênero e Direitos Humanos, Luciene Vizzotto Zanetti vivencia a realidade que buscou pesquisar. “Eu fui um laboratório para desenvolver a pesquisa, porque não é fácil. Até na minha banca uma examinadora fui questionada ‘Nossa, mas você é juíza, está em um espaço de poder, vocês ganham a mesma coisa que um juiz homem, o que acontece?’ Acredito que por estar em espaços de poder a todo momento somos lembradas que aquele não é nosso lugar. Há muito estereótipo, muito assédio; é um ambiente hostil”, relata.
Houve, porém, melhoras. “Sou magistrada há 20 anos e, até uns 5 ou 6 anos atrás, nem se podia falar sobre isso. Acreditava que apenas eu sentia essa desigualdade. Existia um tabu em discutir a disparidade de gênero”. Sua pesquisa comprovou cientificamente o que já era observado empiricamente.
A pesquisa
Por meio de formulário virtual, 20,6% das magistradas integrantes do TJPR foram ouvidas. Elas responderam a 40 perguntas, entre fechadas e abertas, sobre os temas: ingresso na carreira; formação acadêmica e capacitação; assédio moral e sexual; maternidade; participação institucional; divisão sexual do trabalho e saúde mental.
Das mulheres ouvidas, 74,3% ingressaram na carreira depois do ano 2000. Destas, 47% disseram ter passado por situações constrangedoras durante a banca avaliadora do concurso público, como por exemplo, questionamentos sobre estado civil, maternidade e menções à aparência.
As questões sobre qualificação mostraram, de forma inequívoca, como a sobrecarga de tarefas familiares, domésticas e de trabalho dificultam a realização de cursos de aperfeiçoamento e, consequentemente, a ascensão de carreira das mulheres magistradas.
“Tais elementos estão inscritos na ‘cultura de carreirismo’, que exige dedicação ao trabalho por horas a fio, o cumprimento de prazos apertados, a disponibilidade para realizar viagens regulares e/ou mudar de residência. Exigências dessa natureza são, muitas vezes, incompatíveis com as responsabilidades familiares, dentro de uma ordem patriarcal, o que explica a razão pela qual homens tendem a apoiar-se nas respectivas mulheres. Estas, em um relacionamento heteropatriarcal, possuem imensa dificuldade em se desvencilhar dos papéis a ela imputados”, explica Luciene.
Outros dados levantados pela pesquisa mostram que 64,9% das magistradas do TJPR já sofreram assédio moral, fato que também compromete o desempenho profissional.
“Pesquisadores já identificaram que a baixa representação numérica das mulheres resulta em uma visibilidade aumentada, o que pode oprimi-las e levá-las a adotar um comportamento discreto, quase ‘invisível’. Por outro lado, se elas se comportam como líderes, encaixando-se em estereótipos masculinizados, acabam sendo taxadas de ‘mulheres de gelo’”, conforme destaca a autora.
Além disso, algumas mulheres, na tentativa de se sentirem pertencentes ao grupo dominante, reproduzem o machismo institucional de maneira ainda mais cruel, o que a autora define como comportamento de “abelhas rainhas”. “Isso resulta na deslegitimação das pautas femininas e a conclusão é que qualquer comportamento adotado pela magistrada será alvo de críticas e julgamentos”, afirma Luciene.
Novos tempos
No posfácio do livro, intitulado “Novos tempos se avizinham”, a juíza aborda melhorias implementadas nos últimos anos visando a garantia da equidade de gênero nos tribunais do país. Ela aponta o papel ativo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), elencando decisões publicadas pelo órgão a partir de 2018 que resultaram em mudanças significativas país afora, incluindo no TJPR.
Dentre as medidas de maior impacto está a Resolução 525/2023, na qual Luciene colaborou na construção junto com o grupo de pesquisa da ENFAM (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento), do qual faz parte. Esta resolução estabelece, entre outras medidas, que as promoções para o cargo de desembargador devem ocorrer alternando-se editais para ambos os gêneros e editais exclusivos para mulheres, até que se alcance uma proporção de 40% a 60%.
Na primeira semana de fevereiro, o TJPR empossou a primeira mulher presidente em seus 133 anos de história, a desembargadora Lidia Maejima. Luciene enfatiza que este fato deve ser comemorado, mas alerta para a necessidade de não tomarmos essa exceção como regra.
“A presença de uma mulher presidindo a mais alta corte do Estado pela primeira vez é um marco significativo e inspira esperança. No entanto, ao refletirmos sobre o longo tempo que levou para alcançarmmos essa conquista e a disparidade persistente entre homens e mulheres em cargos da cúpula diretiva, bem como a estrutura organizacional de trabalho das instituições ainda predominantemente masculina, percebemos que a luta pela igualdade de gênero ainda precisa continuar por muito tempo”, destaca.
“O caminho não se resume à mera ascensão de algumas mulheres privilegiadas. É preciso garantir que todas as mulheres, independentemente de raça, etnia, classe social ou orientação sexual tenham as mesmas oportunidades de progredir em suas carreiras. A sororidade e a intersecção das lutas são essenciais”, pondera a juíza.
Serviço: Lançamento do livro “Equidade na Toga-Desigualdade(s) de gênero na magistratura e impactos da organização de trabalho genderizada na carreira das mulheres magistradas do TJPR”
Data: 21/02/2025
Horário: 19h
Local: Livraria da Vila – Aurora Shopping (Londrina)
Obra já disponível no site www.editorathoth.com.br
Sobre a autora
Luciene Oliveira Vizzotto Zanetti é mãe de duas meninas, Juíza de Direito do TJPR, Doutoranda em Direito na Universidade de Salamanca – Espanha, Mestra em Estudos sobre as Mulheres, Gênero, Cidadania e Desenvolvimento pela Universidade Aberta de Portugal, Especialista em Direitos Humanos e Questão Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Membra da Comissão de Igualdade e Gênero do TJPR, Representante Suplente do TJPR no Grupo de Trabalho Interinstitucional de Gênero do Estado, Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Gênero, Direitos Humanos e Acesso à Justiça da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), Pesquisadora do Laboratório de Estudos do Feminicídio (Lesfem) da UEL, Co fundadora Grupo de Magistradas do TJPR Antígona-O TJPR Somos Todas Nós, membra do coletivo TODAS da Lei e da Coalização Nacional de Mulheres.