Em 90 dias, as farmácias brasileiras poderão comercializar medicamentos à base de cannabis (maconha). A decisão foi anunciada no início desta semana pelos diretores da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). O argumento da entidade para regularizar o medicamento para fins medicinais é de que esses remédios poderiam melhorar a vida de até 13 milhões de pacientes que dependem dos efeitos benéficos dos derivados canabinoides para tratar problemas de saúde. Essa polêmica questão já vinha sendo alvo de discussão há cinco anos no país.
No Brasil, atualmente, há o registro de apenas um medicamento à base do canabidiol (CBD): o Mevatyl, indicado somente para a espasticidade em graus moderados e graves relacionada à esclerose múltipla. Os pacientes que têm prescrição médica para usar remédios que contêm CBD em sua composição precisam importar esses medicamentos. A expectativa, com a regulamentação da Anvisa, é de que outras opções de produtos farmacêuticos com esse componente cheguem às prateleiras brasileiras, por meio da importação ou fabricação nacional.
No entanto, a medida enfrenta resistência do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O ministro da Cidadania, Osmar Terra se manifestou contrário à ideia. Ele defende que a maconha é a porta de entrada para outras drogas e que 25% da população é muito vulnerável à dependência química. Terra afirmou que a regulamentação da maconha aumentou a violência e o número de acidentes no trânsito em vários países. “Eu sei que aqui tem mães carinhosas preocupadas, que vão até o fim do mundo para salvar seus filhos e para aliviar o sofrimento dos seus filhos. Elas têm que ter um apoio necessário. Agora, eu poderia fazer uma reunião aqui com as mães que perderam os filhos para a droga, que são muito mais numerosas”, disse o ministro, por meio da Agência Senado. A autoridade relata ainda que que cresceu o consumo de drogas por jovens em países que liberaram a maconha medicinal.
A psiquiatra paranaense Alessandra Diehl, que também é vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos sobre o Álcool e outras Drogas (ABEAD), acompanha o raciocínio do ministro e também enxerga pontos negativos e positivos no que tange à resolução da Anvisa. O primeiro deles diz respeito ao aumento do número de pessoas que irão procurar o medicamento alegadamente “precisando do mesmo” como já ocorreu em estados americanos, tais como o Colorado nos Estados Unidos da América (EUA) onde o CBD está regulamentado desde 2009. Houve um aumento do número de pessoas cadastradas fazendo uso do CBD por motivos de saúde diversos, até mesmo para situações onde as evidências científicas ainda não são tão robustas, diz Alessandra.
Outra questão levantada por Alessandra Diehl refere-se ao fato das pesquisas serem ainda muito incipientes, sobre os efeitos benéficos da “maconha medicinal” na fabricação de produtos medicinais para diversas indicações terapêuticas. “O Canabidiol, também conhecido como CBD, é um dos mais de 100 componentes da Canabis Sativa, nome científico da maconha. A eficácia desse componente só é cientificamente comprovada para o tratamento de dois tipos de epilepsia raras, que acomete pacientes na infância: a síndrome de Gravet e a síndrome de Lennox-Gastaut”, esclarece a psiquiatra.
Ela acrescenta que o receio é que haja uma prescrição indiscriminada de medicamentos feitos com CBD, sem qualquer comprovação científica, e contenham ainda alguma quantidade de “contaminantes” com THC, que é o Tetraidrocanabinol. “O THC é o princípio ativo da maconha que causa efeitos psicóticos, prejuízos cognitivos e dependência. Por isso, é muito importante conscientizar a população sobre a diferenciação das propriedades terapêuticas do CBD que são diferentes do THC. Os dois componentes aparecem em conjunto na composição da grande parte dos fármacos produzidos na forma de medicamentos. Nesses casos, deve-se, acima de tudo, distinguir claramente os potenciais benefícios para a saúde mental do “CBD medicinal” dos efeitos adversos da maconha de alta potência em THC”, explica a vice-presidente da ABEAD.
Alessandra Diehl diz ainda que os médicos brasileiros vão precisar agir com parcimônia em suas prescrições, e estarem alertas a pressão social que poderá advir desta expectativa de uso para que não tenhamos problemas futuros com origem nessa regulamentação da Anvisa. “É preciso ter cautela. Como cientista, desejo que as pesquisas sejam aprimoradas para confirmar o papel do CBD em outras indicações terapêuticas além das duas epilepsias. Defendemos ainda a educação continuada e permanente de médicos para promover a seguinte reflexão: talvez o uso do CBD não seja uma panaceia, mas que tenha seu papel no tratamento de doenças com fundamento em bons estudos clínicos. Felizmente, a Anvisa não autorizou o plantio da droga, que segue proibido em nosso país. Não parece ser de competência deste órgão, aliás, regulamentar isto”, finaliza Alessandra Diehl.